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Um horizonte a ser compreendido enquanto seguimos em suspenso


Art by Emma Lemire


Interrompi-me. Naquela metade de março, estava prestes a novamente descobrir outra parte do mundo e mergulhar num estudo, ansiosa, empolgada, regenerando meus entusiasmos no caminho e na vida. Arrumei as malas, esvaziei a geladeira, tomei um banho e um café, me aprontei pra ir em direção ao aeroporto.

Nos dias que antecederam a viagem, tive conversas importantes, preparei-me emocionalmente para deixar meu espaço seguro e confortável de casa, a vista do horizonte, com lagoa e montanhas, e a rotina já tão conhecida. Não era a primeira vez que eu iria viajar ou deixar meu país. Tenho a sorte de já poder ter percorrido um pouco desse mundo. Também não ia ficar muito tempo fora. Era uma viagem breve, de pouco mais de um mês. Mas algo estava estranho, várias coisas não correram muito bem para concretizar a viagem, e tinha um sentimento esquisito no ar. Já estava uma calamidade em alguns países, e logo se anunciaria uma pandemia.

No Brasil, particularmente em Florianópolis, tudo estava absolutamente normal. Sem saber muito bem como me portar nesse novo cenário, me ajeitei pra essa jornada, sabendo que o momento do mundo era um tanto desafiante. Adentrar a Inglaterra nesses termos seria um pouco desconfortável. Minha amiga que vinha buscar minha gata já estava a caminho. Eu recebi um telefonema da minha mãe e, durante nossa conversa, olhei a tela do computador e vi o e-mail da instituição em que eu faria um curso, cancelando-o. No dia anterior, estava tudo confirmado.

Eu, que estava há alguns minutos de sair para o aeroporto, recebi uma carga de adrenalina inédita. Desliguei o telefone e rapidamente liguei para a companhia aérea remarcando o voo.

Nesse momento, começou pra mim a sensação de estar em suspenso. Naquele dia em especial, um tanto cinza, com uma cozinha esvaziada, com um casa que logo ficaria inabitada, me senti sem direção. Onde eu estava? O que eu faria nas próximas horas? O dia estava nublado e quente, minha amiga chegou, eu contei com detalhes o que houve e ficamos as duas sem entender direito o novo momento. Era ainda totalmente inacreditável.

Em algumas horas, eu iria estar em outro continente, falando outro idioma e, de repente, estava eu ali, sem saber muito bem de nada. Saímos para almoçar e depois nos despedimos. Dirigi até a praia e andei na areia, para ver se algo fazia um pouco mais de sentido. Mas não. Aquele dia foi o dia 01 da temporada em suspenso. O mundo em suspenso. A humanidade em espera.

Tudo mudaria alguns dias depois em Floripa, mas pra mim tudo começou ali. Fui interrompida. Sem ter direito à escolha, apenas entreguei-me. Por um lado, senti um alívio imenso, já estava bem atualizada da situação da Europa e sabia muito bem que poderia ficar presa lá até conseguir voltar se as coisas piorassem. Por outro, meu plano era aquele. Quem era eu sem um plano? Não sou a pessoa que mais costuma fazer planos na vida. Mas dessa vez tinha feito, tinha demorado a decidir, mas quando decidi, fui até o fim. Era aquilo que eu queria fazer no próximo mês.

Minha jornada no autoconhecimento me ensinou muito que não temos controle sobre nada, e que apesar de fazermos planos, o próximo passo é despregar-se dos resultados daqueles planos. Então já tinha um certo costume quando algo tão brusco aconteceu. Mas a verdade é que o estar em suspenso continuou. E agora, já no fim de maio, os planos continuam meio sem ser feitos. Não quer dizer que não dá pra sonhar, imaginar, pensar nas infinitas possibilidades do viver. Mas tem algo um tanto interrompido nisso tudo.

Podemos sonhar, mas até um certo ponto. Não sabemos de nada dos próximos meses. Perdemos um pouco da espontaneidade. Quero te ver, mas não posso. Quero te abraçar, mas não posso. Até quando poderemos nos contentar com uma vida sem pele? Quero atravessar um oceano, mas dessa vez não dá. Espera. E a espera se tornou longa, e o viver um dia de cada vez nunca fez tanto sentido.

Fala-se em presença, em respiração e paciência. Acho que o horizonte nos dá um tanto de confiança nesse momento. A gente olha pra ele — e vê que há esperança. Lá todo dia nasce um dia novo. Tem sol e tem nuvem, tem chuva e calor, tem um tanto de incerteza no horizonte, e no clima. O clima é sempre diferente. Mas lá, no horizonte, sempre nasce um dia novo. Não importa o que façamos, vai nascer um dia novo. E essa folha em branco, mesmo que haja limitações, ela existe. A gente pode não ver, mas ela existe. Em branco, assim, para ser escrita, desenhada, em preto e branco, ou cores — e tá lá, um tanto disponível.

Será que agora esses planos que estão limitados não tem mesmo que ser feitos dentro da gente? Será que o mapa que precisamos desbravar agora não é o das nossas próprias vidas e do que temos feito com elas até agora? E será que agora, nesse lugar meio desconcertado de nova convivência, sob máscaras, não seja a hora exatamente de todas as nossas as máscaras caírem? E será que o ar que sufoca por debaixo do pano que cobre nossa face não seja justamente o momento de percebermos o valioso instrumento que temos dentro de nós o tempo todo, a respiração?

Alonga a respiração para divagar junto nesse texto que não tem conclusão, mas perguntas muito vivas. E que se façam perguntas, e que nos façamos questionamentos, o tempo inteiro, não só nos momentos em que somos pressionados ao máximo.

Laira Ramos é fundadora da ÀTerra (www.aterrasustentavel.com), vive em Florianópolis, e trabalha com atividades corporais, projetos de sustentabilidade e autoconhecimento.

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